8 de junho de 2011

O social e o pedagógico na Sociolinguística



 (SOUSA, Alexandre Melo)



RESUMO:
Este estudo, cujo objetivo precípuo é propor caminhos para a efetiva aplicação da Sociolinguística no campo pedagógico-educativo, apresenta reflexões sobre a proposta da Sociolinguística com respeito ao desfazimento do mito estruturalista da homogeneidade lingüística, e sobre a noção de relativismo cultural. Constata-se, a partir das discussões apresentadas, que a descrição da variação na Sociolinguística Educacional não deve ser dissociada da análise interpretativo-etnográfica do uso da variação em sala de aula, e deve haver conscientização crítica dos professores e alunos quanto à variação e à desigualdade social que ela reflete.

PALAVRAS-CHAVE:
Sociolinguística, heterogeneidade lingüística, variação lingüística, ensino.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Parece consenso entre os que se dedicam, contemporaneamente, aos estudos da linguagem que uma abordagem sob o enfoque unicamente normativo conduz a conclusões equivocadas, o que, conseqüentemente, favorece a geração de falsos conceitos e tratamentos inadequados dos fenômenos lingüísticos, especialmente no ambiente escolar. Para exemplificar, pode-se fazer menção a dois aspectos: o primeiro diz respeito à primazia dada à escrita em detrimento da fala, como escopo primeiro das abordagens lingüísticas; e o segundo é a irrelevância aos fatores extralingüísticos nas referidas abordagens.
Guardadas as diferenças concernentes ao enfoque, todo lingüista parte do princípio de que todas as línguas naturais são heterogêneas e passíveis de variações. Estas últimas, segundo Camacho (2001, p. 60), motivadas por fatores geográficos, sócio-econômico-culturais ou estilísticos. “O estudo de uma unidade com as características da variável lingüística só é possível no interior de um arcabouço teórico que abandone o postulado ainda vigente de categoricidade, o que de pronto se deu com a Sociolinguística laboviana” (Camacho, 2001, p. 61).
Nosso objetivo é fornecer bases para uma concepção aplicada da Sociolinguística no domínio pedagógico-educativo. A escolha deste tema não foi fortuita. Desejamos mostrar que o papel da referida ciência não se limita apenas à análise quantitativa e qualitativa de dados de línguas funcionais. Intentamos, aqui, demonstrar que a Sociolinguística fornece subsídios, ainda que muitas vezes indiretos, para o ensino da língua.
Em primeiro lugar, vamos mostrar, apoiados no artigo de Bortoni-Ricardo (1996), que a Sociolinguística propõe um avanço com base no desfazimento do mito estruturalista da homogeneidade lingüística. Mito que se difundiu graças à generalização do trabalho pioneiro de Ferdinand de Saussure (1977), mormente em virtude da oposição entre língua e fala, sendo aquela mal compreendida nos meios acadêmicos, uma vez que a noção em Saussure é polissêmica, sendo a noção de estrutura e de sistema apenas um dos suportes.
A Sociolinguística também trouxe à baila a noção de relativismo cultural, sobre o qual debateremos ao longo deste trabalho. Não só heterogeneíza a estrutura, mostrando microestruturas, como também põe em evidência que as variedades possuem uma organização inerente.
Um terceiro e último passo em nossa pesquisa, decorrente dos dois anteriores, é mostrar que o contexto de uso da língua passou a ser posto em voga. O conceito de comunidade de fala ou comunidade lingüística integrou o objeto de estudos, voltado para as variedades regionais, sociais e funcionais, quanto ao sistema de normas culturais que orienta a comunicação em grupo.
Comecemos, pois, com a abordagem estruturalista e com o posterior enriquecimento que a Sociolinguística trouxe para a abordagem da língua, principalmente no plano pedagógico. O texto de Bortoni-Ricardo (1996) nos servirá como ponto de partida para irmos a outros textos e fazermos, nós próprios, os comentários críticos devidos.

1 O social e o pedagógico no Estruturalismo
Como dissemos anteriormente, a Sociolinguística contribuiu para a compreensão da heterogeneidade lingüística e do fenômeno da mudança, este último aspecto, principalmente, devido ao trabalho de Labov (1972). Mas vamos ficar, aqui, na desmistificação da heterogeneidade.
É sabido e amplamente divulgado que Ferdinand de Saussure preconizou a língua enquanto sistema onde as partes mantém relações solidárias. Em outras palavras, segundo afirmação atribuída ao mestre genebrino: a língua é forma, não substância; assertiva que, isolada, levou às descrições abstratas e ao algebrismo da Glossemática.
Contudo, embora não se vislumbre em Saussure um viés clara e assumidamente sociolingüístico, não é justo que fiquemos limitados à concepção de língua como sistema de formas. Coseriu (1967) mostrou, através de uma leitura vertical do Curso de Lingüística Geral, que, além da noção de relação entre partes, de tal modo que o todo é maior que a soma delas, duas outras aparecem: língua como acervo depositado no cérebro dos falantes e língua como instituição social. Este último aspecto foi muito bem acentuado em “Imutabilidade e mutabilidade do signo”, sobre o qual não vamos fazer comentários para não fugirmos do assunto. O que queremos destacar é que Saussure não desconhecia a faceta social da língua, e reconhecia-a, aliás, a ponto de afirmar que as mudanças só se consolidam quando ganham dimensão social a partir da ação do indivíduo, que pode ganhar, ou não, contornos institucionais.
Mas como acentuou Coseriu (1967), Saussure estava claramente inspirado pela Sociologia de Durkheim, e, guiado por esta Sociologia, via a língua como exterior ao indivíduo e anterior a ele, do mesmo modo que para o sociólogo, a sociedade se constituía igualmente como fenômeno exterior e precedente ao indivíduo que se submetia à coerção social. Em suma, o fundador do Estruturalismo europeu via, mais precisamente, a língua como um fenômeno coletivo que como um fenômeno social.
Ainda no seio do Estruturalismo, houve autores que vislumbraram insuficiência no enfoque coletivizante de Saussure. Um deles é o já citado Coseriu (1967; 1980) que apresenta uma dicotomia de pouca divulgação: a oposição entre língua histórica e língua funcional.
A língua histórica constitui um diassistema, uma rede integrada de níveis de língua, que abrange variedades denominadas: diatópicas (concernente à variação regional, geográfica), diastráticas (referente à variação social) e, por fim, diafásicas (referente à noção de registro). A língua funcional, por sua vez, era de caráter sintópico, sinstrático e sinfásico, pois, para fins metodológicos, propunha uma só variedade nos três níveis citados. Daí, como explica o lingüista em tela:
[...] uma língua histórica não pode ser descrita estrutural e funcionalmente como um sistema lingüístico, como uma estrutura unitária e homogênea, simplesmente porque não o é; ao contrário, contém, em geral, sistemas lingüísticos bastante diferenciados, às vezes não menos diferenciados do que certas línguas históricas reconhecidas como tais [...] Por outro lado, uma descrição estrutural única de toda uma língua histórica, sobre ser racional e empiricamente impossível, não teria nenhum interesse prático, uma vez que a língua histórica não se fala: não é realizada como tal e de modo imediato (COSERIU, 1980, p. 113)

A funcional, por sua vez, é a língua diretamente “realizada”. É ela que entra efetivamente nos discursos – o que justifica o adjetivo “funcional”. Acrescente-se, ainda, que é essa a língua tida como objeto próprio da descrição lingüística estrutural e funcional: caracterizada por Coseriu (1980, p. 114), como “um só ‘dialeto’, considerado em determinado ‘nível’ e num determinado ‘estilo de língua’”.
Foi o mesmo autor romeno que, julgando por demais polarizada a oposição entre língua e fala, propôs, em seu célebre ensaio Sistema, norma y habla (1967), a noção de norma: coletiva como a língua, mas de algum modo opcional como a fala, tanto que pode ser transgredida gerando efeitos estilísticos diversos. Conforme Almeida e Zavam (2004, p. 250):
Para Coseriu, o sistema seria um conjunto de oposições funcionais, a norma seria a realização coletiva do sistema, a qual contém os elementos não-pertinentes ao sistema, mas normais na fala de uma comunidade; a fala, por sua vez, seria a realização individual-concreta da norma somada à originalidade expressiva da falante.

 A bem da verdade, a relação entre sistema e norma é bem mais complexa: sendo coletiva, esta última abrange tanto os traços distintivos quanto aqueles que não o são. Também é complexa, para alguns lingüistas, como Silva (2003), a concepção de língua como sistema. Segundo a autora, trata-se de
[...] uma abstração e uma generalização consideráveis: sob a denominação de “língua”, vige uma gama de variações decorrente de diversificação da substância concretizada nos atos de fala de seus usuários: nenhuma língua, pois, é unificada, uma vez que inexiste o que se poderia designar “monobloco lingüístico”.

No entanto, como afirma Bortoni-Ricardo (1996), é no contexto histórico de valorização da etnicidade e da difusão da pobreza nos guetos negros das cidades americanas que surge a Sociolinguística como ciência de propostas maduras para estudar as relações entre os usos da língua nas comunidades e o ensino na escola. O motivo parece-nos óbvio. De um lado, grande parte do Estruturalismo não se interessava pela oralidade, mas basicamente pela produção escrita. Na mesma linha dos gramáticos tradicionais, visavam a chamada norma culta, embora não tenha havido entre os cultores da escola esforços para definir o que é esse tipo de norma.
No âmbito do descritivismo americano, houve uma grande preocupação com a descrição de línguas indígenas, mas o objetivo pedagógico continuava remoto. Para não sermos parciais, houve incursões pedagógicas, mas pobres, baseadas na retenção de estruturas: testes de substituição, expansão e redução, entre outros. A Sociolinguística veio dar um acorde diferente a estas orientações pautadas subliminarmente em propostas behavioristas, muito difundidas no ensino de línguas estrangeiras

2 O social e o pedagógico na Sociolinguística

Como afirma Bortoni-Ricardo (1996, p. 20-21), o objetivo dos sociolingüistas da década de 60 era defender a tese de que a fonte de fracasso da criança na escola era a interferência dialetal. Esta tese era esposada, inclusive, por Bernistein (cf. Soares, 1986), que fez um estudo comparativo de produções escritas de crianças pertencentes a classes favorecidas e desfavorecidas. A princípio, há uma certa dose de verossimilhança. Tomemos, por exemplo, algumas ilustrações que ainda vigoram no ensino gramatical do português brasileiro: a) o ensino da mesóclise, em franco desuso; b) o ensino do pretérito-mais-que-perfeito simples, substituído na fala pelo pretérito-mais-que-perfeito composto com o auxiliar ter; c) o ensino de formas pronominais átonas de terceira pessoa. Este último aspecto merece uma grande atenção, pois, como já demonstrou Monteiro (1994), é usual o emprego de ele / ela, na oralidade, e isto se reflete na escrita. Isto sem falar no uso das formas de dativo para objeto direto de segunda pessoa, de alternância de emprego entre formas como nós e a gente
Parece tentador propor no âmbito da Sociolinguística uma abordagem bidialetal. Assim, seriam elaboradas cartilhas e materiais de alfabetização no dialeto do aluno sendo, paulatinamente, inserido material redigido em língua padrão. O grande problema é que o preconceito continua e a elaboração de cartilhas alternativas parece mais uma estratégia para alcançar as cartilhas-padrão. Nossa opinião é que o preconceito básico é de natureza social e, secundariamente, lingüístico, e não será a escola que vai eliminar a base do preconceito, mas sim uma maneira ampla de ver as diferenças entre homens no plano social, econômico e étnico. Não estamos, obviamente, desmerecendo o papel da Sociolinguística, que tem trazido grandes avanços nos referidos assuntos e, acima de tudo, foi quem pôs o problema em voga, mas não podemos nos esquivar à conclusão de que os fundamentos do preconceito lingüístico são anteriores à língua.
Isto nos evoca à França dos tempos pré-revolução francesa. Era ridicularizada a pronúncia /wa/ em vez de /we/ para os grafemas oi. Com a ascensão da classe burguesa ao poder a pronúncia estigmatizada foi gradualmente adotada (cf. Elia, 1979). E o que dizer do latim vulgar, que por condições históricas favoráveis (invasão dos bárbaros, decadência da nobreza, difusão do cristianismo etc.) acabou se impondo na România? O problema é, pois, muito mais amplo que fazem supor as teses de natureza lingüística, quer estruturalistas, quer sociolinguísticas.
Muitas propostas foram lançadas. Uma delas, de Stewart, citado por Bortoni-Ricardo (1996), sugeria que os textos escolares fossem redigidos no dialeto e que a ortografia utilizada fosse ajustada à proposta deste. O problema é que a fala é extremamente variável e a pronúncia também, de modo a impossibilitar uma ortografia nos moldes sugeridos pelo sociolingüista mencionado. Outras sugestões, de execução difícil, dizem respeito ao emprego de símbolos fonéticos para representar segmentos fonológicos num nível mais abstrato.
Equívocos a parte, não se pode negar que a Sociolinguística postulou, a partir do seu surgimento, “o princípio de que a heterogeneidade não é um aspecto secundário e acessório da estrutura da linguagem; é, pelo contrário, uma propriedade inerente e funcional” (Camacho, 2001, p. 69).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo exposto, vimos que, com relação ao Estruturalismo, a Sociolinguística apregoa o relativismo cultural, a heterogeneidade lingüística e a relação dialética entre formas e funções lingüísticas.
Todavia, restringir o papel da Sociolinguística, no âmbito pedagógico, ao bidialetalismo, é um tanto ingênuo por não levar em conta fatores de ordem macrossocial. A Sociolinguística, vista por si só, não logra resultados de fôlego uma vez que, conforme assinalou Bortoni-Ricardo (1996, p. 25-28), para tratar a variação lingüística na escola, é preciso ter consciência que:
a) a influência da escola na língua não deve ser procurada no dialeto vernáculo dos falantes, mas em seus estilos formais, monitorados;
b) regras que não estão associadas à avaliação negativa da sociedade não são objeto de correção na escola e, portanto, não devem influir consistentemente nos estilos monitorados;
c) no caso do Brasil, a variação tem estreita ligação com a variação diatópica (dicotomia rural-urbano) e diastrática (estratificação social);
d) os estilos monitorados da língua devem ser reservados para realização de eventos de letramento em sala de aula.
No entanto, são de destacar dois aspectos: a descrição da variação na Sociolinguística Educacional não deve ser dissociada da análise interpretativo-etnográfica do uso da variação em sala de aula, e deve haver conscientização crítica dos professores e alunos quanto à variação e à desigualdade social que ela reflete.
Por fim, vale citar as palavras de Biderman sobre o assunto em foco:
[...] a interferência do social sobre o lingüístico é de uma tal amplitude que o problema da língua e sobretudo da norma lingüística não pode ser isolado de todos os fatores extralingüísticos e máximes sociais que os determinam (BIDERMAN, 2001, p. 31).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Nukácia, ZAVAM, Aurea .2004. Variação lingüística: uma questão de sala de aula. In: A língua na sala de aula: questões práticas para um ensino produtivo. Fortaleza: Perfil Cidadão, p. 237-267.
BIDERMAN, Maria Tereza C. 2001. Teoria lingüística: leitura e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 356p.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. 1996. O debate sobre a aplicação da sociolinguística à educação. Pesquisa e ensino da língua: contribuições da sociolinguística – ANPOLL. Rio de Janeiro: UFRJ, p. 17-30.
CAMACHO, Roberto Gomes. 2001. Sociolinguística. In: BENTES, Anna Christina; MUSSALIM, Fernanda. Introdução à lingüística. (v. 01). São Paulo: Cortez, p. 49-75.
COSERIU, Eugênio. 1967. Sistema, norma y habla. In: Teoria del lenguaje y lingüística general. Madrid: Gredos, p.11-113.
COSERIU, Eugênio.1980. Lições de lingüística geral. Rio de Janeiro: Presença, 129p.
ELIA, Silvio. 1970. Preparação à lingüística românica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 284p.
LABOV, Willian. 1972.  Sociolinguistic Petterns. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 364p.
MONTEIRO, José Lemos. 1994. Pronomes pessoais. Fortaleza: EDUFC, 272p.
SAUSSURE, Ferdinand de. 1977. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 279p.
SILVA, Maria Emilia Barcellos da. 2003. Os estudos dialetológicos e seu compromisso com o ensino. In: Cadernos da Academia Brasileira de Filologia, v. 02 (n. 01). Rio de Janeiro: CIFEFIL, p. 75-93.
SOARES, Magda Becker. 1986. A linguagem e a escola. São Paulo: Ática, 95p.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não deixa de comentar!